Como os planos de streaming se tornaram um fardo e como o episódio “Pessoas Comuns” aborda o pior cenário possível?
A nova temporada de Black Mirror teve uma ótima recepção, depois de muitos anos e temporadas que pareciam não ter muito propósito, os novos episódios resgatam os questionamentos da relação entre a humanidade e a tecnologia.
O primeiro episódio dessa sétima temporada, chamado “Pessoas Comuns”, já começa com uma sátira bem triste e pessimista do futuro dos serviços de streaming e dos planos de saúde (o que é irônico considerando que foi produzido pela Netflix, o mais famoso serviço de streaming).
Na trama, uma professora de ensino fundamental, Amanda, e um soldador, Michael, são um casal feliz de classe média, que tem essa rotina quebrada quando é descoberto um tumor no cérebro de Amanda, que fica inconsciente e sem possibilidade de recuperação.
Uma empresa startup entra na jogada com uma solução: substituir a massa do tumor por um tecido sintético e tecnológico, que é ligado a uma cloud que abrange uma área cercada por antenas da empresa, e que permitiria que ela vivesse normalmente, dado que substituiria a função cerebral.
Quem apresenta esse projeto é uma representante que afirma ser ela mesma a prova de eficiência do projeto, dado que tinha estado em situação similar devido a um acidente anos antes. Esse milagre sairia por apenas US$ 300,00 por mês.
Os problemas começam a surgir quando o serviço começa a ter concessões e vantagens exclusivas, custando muito mais caro que o preço inicial, e passam a ser um enorme impeditivo na vida do casal, para dizer o mínimo.
Falar mais que isso seria spoiler. Em típico estilo “Black Mirror”, o episódio mostra qual seria o “pior cenário possível” dessa realidade, algo que, infelizmente, pode não ser tão distante do nosso futuro.
A “Netflixzação” do mundo
Quando a Netflix veio com seu serviço de streaming, é como se um sonho se tornasse realidade.
Você não mais precisaria ir até uma locadora alugar o filme ou série que queria assistir, nem precisaria de um aparelho de DVD/Blu-Ray. Era um catálogo inteiro disponível no conforto da sua casa e no clique de um botão, por um preço bem razoável.
Isso não iria durar por muito tempo.
Logo outras empresas e conglomerados queriam um pedaço desse bolo, e foram tirando conteúdos da Netflix para criarem seus próprios serviços de streaming exclusivos (Max, Disney +, Amazon Prime Video).
E isso não se limitou apenas a filmes e séries. Não demorou muito para fazerem o mesmo com músicas (Spotify, Deezer, Apple Music), games (Xbox Game Pass e PlayStation Plus) e até mesmo livros (Skeelo e Scribd Unlimited).
O preço também passou a aumentar, muitos serviços começaram com um preço acessível e foram gradualmente ficando mais caros, ou foram propostas assinaturas com menos benefícios e anúncios.
Às vezes até mesmo o plano Premium ainda conta com algumas propagandas obrigatórias, como no Spotify e Amazon Prime Video.
Essa lógica da mensalidade se torna aos poucos mais um fardo do que um benefício. Você tem vários serviços, mas pouco tempo para usufruir deles, sem falar que ocupam espaço na sua renda.
Quem nunca quis assistir a um filme só para descobrir que ele não está disponível em nenhum dos serviços que você assinou? No final, você acaba recorrendo à mídia física ou métodos não tão oficiais para consumir o que você deseja.
Agora imagine essa lógica de negócios fora do entretenimento, mas em serviços essenciais para a funcionamento da vida.
O futuro Black Mirror
Você tem certeza de que é você que escolhe suas decisões?
Tecnicamente, nós já pagamos mensalmente por direitos humanos básicos como água, eletricidade, comida e saúde.
Até mesmo os planos de internet são vitais para qualquer pessoa que queira existir no mundo, afinal, é preciso estar conectado nas notícias e trends do momento.
Ou seja, por mais que se tenha o discurso que você escolhe participar de redes sociais e serviços de streaming por conta própria, a realidade é bem mais complexa.
Sim, você tem a liberdade de ignorar as redes sociais, mas boa sorte em tentar encontrar um emprego estável num mundo cada mais vez conectado e exigente.
Sim, você tem a liberdade de não assinar serviços de streaming, mas boa sorte em tentar procurar cultura em mídias que estejam disponíveis de forma física em sebos ou nas pouquíssimas lojas que ainda oferecem isso (por preços bem mais altos).
Não é difícil imaginar que daqui a alguns anos, essas tecnologias estarão conectadas diretamente no nosso corpo (como o Neuralink) e se tornem praticamente obrigatórias para quem deseja participar do futuro.
Mas, ao mesmo tempo, quem garante que você não vai ter que pagar para não receber anúncios passando diretamente nos seus olhos, ocultado apenas por mais um serviço Plus que decidiram adicionar e que ficará mais caro gradualmente? Ou que seu cérebro não seja frito por um mal-funcionamento do aparelho.
Como no filme Gattaca (1997), em que as pessoas geneticamente modificadas no nascimento eram sempre escolhidas para exercer cargos melhores com altos salários, enquanto aqueles que não tinham dinheiro para se aprimorarem ficavam sempre com a opção de trabalhos manuais ou de limpeza (independente da inteligência e esforço).
Ótima recomendação, caso nunca tenha assistido
Quando a inovação tecnológica existe completamente divorciada da ética e da moral, ela existe apenas pelo benefício de poucos e como um fardo para as “pessoas comuns”, independente das consequências. E é assim que você cria um futuro Black Mirror.
Essa série ressoa e impacta porque as pessoas conseguem identificar as semelhanças com a realidade. O tal “espelho preto” não é apenas a descrição da tela dos aparelhos, é o reflexo do mundo que vivemos.